Por que não evitamos uma vítima?

por André Candreva publicado 26/03/2018 15h38, última modificação 26/03/2018 15h38

Para a OIT, dados revelam que os esforços para eliminar as piores formas de trabalho infantil estão perdendo força

O número mundial de crianças trabalhando diminuiu de 222 milhões para 215 milhões durante o período 2003-2008, ou seja, cerca de três por cento, conforme divulgado no relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado a cada quatro anos. Para a organização, os dados revelam que os esforços para eliminar as piores formas de trabalho infantil estão perdendo força, e alerta sobre a necessidade de "revitalização" da campanha mundial para erradicar esta prática. Por que não conseguimos evitar que crianças e adolescentes se tornem vítimas? A busca pelas respostas à essa pergunta, no intuito de mudar a realidade traçada, mobilizou especialistas nacionais e estrangeiros, e mais de 1.200 participantes e representantes de 13 países, durante o 23º Congresso da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP), em Brasília (DF).

Realizado no ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 20 anos, o congresso, que pela terceira vez consecutiva contou com o apoio do Instituto C&A, traz a perspectiva de discutir a temática relacionada aos direitos infanto-juvenis e promover a reflexão sobre os novos marcos dos direitos humanos na área da infância e da juventude. Durante o evento os atores do Sistema de Garantia dos Direitos contaram com espaços de reflexão sobre os papéis que devem desempenhar. Juízes, promotores de Justiça e defensores públicos puderam discutir suas atribuições jurídicas e sociais a partir da exposição de casos e de debates acerca de instituições especializadas, como as coordenadorias da Infância e da Juventude. Da mesma forma, conselheiros tutelares e dos Direitos da Criança e do Adolescente tiveram a oportunidade de compartilhar desafios da atuação cotidiana.

A forte presença internacional, especialmente de latino-americanos, comprovou a expectativa de que os debates, sobre os direitos de crianças e adolescentes, transponham as fronteiras nacionais e assumam perspectivas regionais e globais. Presente ao Congresso da ABMP, a integrante de um dos principais órgãos internacionais de defesa dos direitos infanto-juvenis, o Comitê de Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), Susana Villarán, na entrevista a seguir, traça o quadro socioeconômico atual vivenciado por crianças e adolescentes e aponta os principais desafios enfrentados para a garantia dos direitos de meninos e meninas na América Latina. "O trabalho infantil adota o dinamismo do mercado e, em geral, alija as crianças da escola e, em algumas ocasiões, existem formas de escravidão", denuncia. Para ela, temos nos concentrado muito no menino e na menina vítima e pouco em seus direitos, que poderiam ser efetivados de forma eficaz, através das políticas públicas universais. Educadora e jornalista, Susana Villarán participou ativamente do processo de redemocratização do Peru, seu país de origem.
 

Em tese, existe uma série de atores que atuam de forma integrada para garantir os direitos das crianças, mas essa é uma grande dificuldade, porque a integração, que seria a base, não existe. Comente.

Sistemas integrados e integrais são muito melhores, mas apenas se funcionam. Se não funcionam, resultam em compartimentos estanques, que originam não mais do que afunilamentos na demanda por justiça. Entretanto, em 20 anos temos deixado de lado o tema da prevenção, que para mim, é um dos eixos centrais. O que fazemos quando já temos uma vítima? Por que não evitamos uma vítima? Essa é uma grande pergunta. É preciso evitar que as crianças sejam vítimas com todos os recursos que possuímos. Temos nos concentrado muito no menino e na menina vítima e pouco em seus direitos. Se pensarmos apenas nas vítimas, privilegiamos sistemas de proteção e não políticas universais.

 

Qual é a atual realidade vivenciada por crianças e adolescentes na América Latina?
É importante dizer que fomos a primeira região do mundo a nos adequarmos normativamente à Convenção dos Direitos da Criança. Por isso, houve uma mudança muito importante, não somente nas leis, mas também nas instituições. Entretanto, há problemas: nem sempre a leis estão perfeitamente harmonizadas, os planos, às vezes, são apenas planos e não políticas e, muitas vezes, não há financiamento adequado ou mesmo equipes preparadas. Essa é uma primeira constatação. Uma segunda é que existem velhos e novos problemas que desrespeitam os direitos da infância. O trabalho infantil é um velho problema, mas novas formas são adotadas dinamicamente por ele, de acordo com o funcionamento dos mercados. Entretanto, não existe ninguém sensível ao desenvolvimento do mercado do que as crianças. O trabalho infantil adota o dinamismo do mercado e, em geral, alija as crianças da escola e, em algumas ocasiões, existem formas de escravidão. Um terceiro ponto é que a América Latina viu crescimentos econômicos surpreendentes na época dos retornos à democracia e à abertura dos mercados, e, para isso houve, uma maior incorporação de parte da população pelo emprego. No entanto, o padrão de crescimento tem sido desigual, profundamente desigual, e existem lacunas que afetam fundamentalmente as crianças. Um quarto assunto, que também é atual, tem a ver com a migração. Tanto dentro como fora de um mesmo país, a migração coloca as crianças em situações de extrema vulnerabilidade e viola direitos, quase todos. O quinto ponto é que existem fenômenos de violência nunca antes vistos. Há violências físicas, psicológicas, sexuais, através de organizações criminais, internacionais, violência para comércio ilegal de órgãos, servidão sexual, homicídios de crianças e também violência entre familiares.

 

Quais medidas podem ser adotadas para enfrentar essa situação?
Temos que deixar de lado a ambição exclusivamente de proteção de crianças e começar a olhar as políticas universais. Temos que mudar a prioridade na nossa sociedade e colocar o investimento em infância nas políticas universais, como educação, saúde, fortalecimento das famílias e prevenção da violência em todas as suas formas. Ainda que seja por um sentido pragmático de que é melhor investir em políticas sociais universais do que gastar com a recuperação de vítimas, porque está comprovado que os custos são maiores, sempre. É um tema de custo e efetividade, que não é a minha perspectiva, mas é a que alguns entendem, como os ministérios de Economia. Temos que demonstrar, com cifras, que investir em políticas sociais é altamente rentável, e ter orçamentos estratégicos e por resultados na área da infância é extraordinariamente benéfico para a economia do país.

 

Sobre o Sistema de Justiça na América Latina, acredita que falta pessoal capacitado para lidar com assuntos da infância?
Eu acredito que sim. É preciso pensar no tema da justiça juvenil na nossa região. Observe que eu falo justiça juvenil e não justiça penal juvenil. Existe uma grande diferença. Em justiça juvenil nós temos avançado, existem sistemas de justiça especializada, magistrados operadores de justiça, em geral, também especializados. Ainda temos muito por fazer contra a falta de investimento e contra os estereótipos e culturas adultocêntricas - tutelares - que ainda persistem nos operadores de justiça. Ou nos estereótipos de gênero, como no caso de uma garota de 13 anos que foi abusada pelo pai desde os sete anos de idade, mas uma conselheira municipal defendeu que o pai era muito bonito, então, não havia violação. Assim, estamos lutando contra questões que vão além dos cursos, dos mestrados, é uma questão cultural de uma sociedade machista e adultocêntrica, onde os estereótipos de gênero geram discriminação e perpetuam a violência para o sistema de justiça.

 

Podemos afirmar que, na América Latina a sociedade civil organizada (ONGs) é forte e defente com afinco os direitos infanto-juvenis?
Sim, é impresionante. E dentro da sociedade civil organizada, a academia passou a desempenhar recentemente um papel muito importante, abrindo espaço para a investigação e a formação em direitos da criança. Outro aspecto é que há uma presença forte e crescente de crianças e adolescentes organizados, que são protagonistas de fato. As ONGs e o coletivos também têm investido menos em filantropia e estão mais orientados para os Direitos.

 

Fonte: Hoje em Dia.