Os traços de Niemeyer no cotidiano de Belo Horizonte

por André Candreva publicado 26/03/2018 15h38, última modificação 26/03/2018 15h38

Na política, na religião, no lazer, na educação e até como moradia. Não há dúvidas de que o estilo do arquiteto Oscar Niemeyer está inserido no cotidiano de Belo Horizonte. “Vivi a adolescência nesta ‘pequena cidade’ cravada na capital e não troco meu lar por nada. Meu passado, presente e futuro pertencem ao edifício”, enfatiza Márcio Magalhães Otoni, 52 anos, que há 35 cruza os imensos corredores do JK, arranha-céu construído na década de 1950 na Praça Raul Soares, no Barro Preto.

O relato de Otoni é um indício de como a parceria entre Niemeyer e a capital mineira foi e continua bem-sucedida. Sete décadas após sua inauguração, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha é o local de trabalho para o guia e professor Edson Antônio, 39 anos. As curiosidades sobre Niemeyer e a Igreja São Francisco de Assis prendem a atenção dos visitantes. “Vocês sabiam que a igreja é uma das únicas do país que a entrada está virada para uma lagoa? Verdade! Da rua se enxerga os seus fundos. E reparem a cruz fixada no chão, fora da torre”, esmiúça ele cada detalhe da obra, que também leva assinatura do artista Roberto Burle Marx nos jardins e de Cândido Portinari e Paulo Werneck na decoração.

Edson orienta 15 turmas por semana, enquanto milhares de “esportistas” andam de bicicleta, caminham ou passeiam pela orla. “Niemeyer é uma referência na minha vida, no meu trabalho e poderia ser a de outros cidadãos se Belo Horizonte tivesse divulgação turística semelhante à de Ouro Preto, por exemplo”, critica. Ele enfatiza que, nas escolas, as crianças e jovens não aprendem a valorizar a cultura local. Questionado se conseguiria resumir a sua cumplicidade com a Pampulha, Edson se antecipa e dispara: “É a minha paixão”.

A relação de Euler Fernandes, 24 anos, agente cultural da Casa do Baile, na Pampulha, também é profissional, mas ele não esconde o prazer de todo dia trabalhar no local. O espaço abriu as portas em 1943. O restaurante dançante divertia os políticos e personalidades da alta sociedade, dispostos a mostrar a sua ginga na pista do salão. “Dizem que JK deu passos animados de valsa aqui”, afirma Fernandes. A ilhota das marquises sinuosas agitou o bairro por cinco anos e fechou após a desati-vação do cassino (Museu de Arte). Atualmente, é um Centro de Referência de Urbanismo, Arquitetura e do Design, vinculada à Fundação Municipal de Cultura.

Orgulhoso por poder ajudar a divulgar o excêntrico espaço, Euler insiste em ressaltar o processo de popularização das obras de Niemeyer, representado pela Casa do Baile, antes restritas aos endinheirados. “Os prédios tinham demandas elitistas, feitos para aqueles que reuniam condições de frequentar o cassino, o clube e o restaurante. Agora, qualquer um pode apreciar e ‘experimentar’ a beleza das suas linhas características. É só vir às nossas exposições” comemora. Apenas a Casa do Baile recebe 300 visitas semanais, durante os seus eventos artísticos. Pela Igreja São Francisco de Assis, passam 250 pessoas todos os dias.

O agente cultural, apoiado pelo porteiro da Casa do Baile, Roberto Alves, 33 anos, só lamenta o fato de algumas pessoas ainda desprezarem os encantos da cidade. “Eu, antes de trabalhar na casa, ia pouco à Pampulha. Tinha noção mínima desta e das demais construções do arquiteto. Sei que a correria é grande e, nas folgas, a maioria prefere viajar. Mas garanto que ninguém vai se arrepender ao dar uma pulo no conjunto”, convida.

A parceria de sucesso se manteve fiel desde o planejamento do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, na década de 40, até a inauguração da Cidade Administrativa, nova sede do Governo do Estado, em março deste ano. Portanto, mais que nos traços ousados do concreto, Niemeyer reincorpora e redescobre BH na vida cotidiana da sua população.

“A marca dele é comercializável”

A política e suas articulações também exercem um papel importante na relação de Niemeyer com Belo Horizonte. A professora Ana Luiza Nobre explica que não é mera coincidência a participação do arquiteto em muitas construções que simbolizam o poder, incluindo aí a Cidade Administrativa, sede do Governo. “A marca dele é comercializável, tem um apelo imagético forte, imediato junto às pessoas devido à grandiosidade dos edifícios e palácios. A ambição e a motivação política dos líderes se associam às construções nesses casos”, lembra.

Por isso, Ana Luiza questiona observações feitas a certos projetos do arquiteto, como a do complexo da Cidade Administrativa, criticado por privilegiar a estética em função da praticidade e de uma consciência ecológica. “Não se deve cobrar tais parâmetros dele. Estas nunca foram as suas preocupações fundamentais”, afirma a professora.

O arquiteto e urbanista Danilo Matoso Macedo, autor do livro “Da matéria à invenção: as obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais”, reforça este teor político. Macedo comenta que Niemeyer transmite em suas obras aspectos desenvolvimentistas e de um futuro melhor, mesmo que eles ainda estejam distantes. Paisagens que, segundo ele, influem no inconsciente da população.

“JK conseguiu por meio Niemeyer quebrar a imagem de Belo Horizonte, e do Estado, vinculada à oligarquia agrária, incentivando o desenvolvimento industrial. A repercussão, fora e na cidade, foi maravilhosa”, diz Macedo.

Cinco mil pessoas em um único prédio

Por trás das janelas geometricamente dispostas no Conjunto Governador Juscelino Kubitschek, situado nas ruas Timbiras e Guajajaras, Barro Preto, Região Centro-sul, 5 mil moradores presenciaram o crescimento da capital de um ângulo privilegiado. Já “quarentão”, o tradicional Edifício JK – que possui 1.086 apartamentos, de um quarto a duplex, divididos em dois blocos – resistiu à força do tempo e embalou histórias de muitos personagens. Figuras anônimas que não se cansam de expressar o amor ao arranha-céu mais charmoso e imponente de Belo Horizonte, marca de Oscar Niemeyer.

Alguns moradores viveram aventuras inimagináveis. O enfermeiro João Batista, 48 anos, lembra de um inusitado encontro com o próprio arquiteto Oscar Niemeyer, há uma década, na mansão de um político. “Ele me perguntou se eu tinha ouvido falar no Edifício JK. Na hora, respondi que morava lá”, reporta. Niemeyer, na versão de João, aprovou a coincidência e não parou de desabafar. “Ele me confidenciou que, no projeto, havia desenhado uma passarela uniria os blocos A e B, museu, restaurante, hotel e lojas. E que era uma pena que muitos desses planos não se concretizaram”, conclui.

Para Márcio Magalhães Otoni, que há 35 anos mora no JK, tem na memória uma série de cenas “fantásticas e inesquecíveis”. “Eu avistava o estádio Mineirão do alto de um dos blocos. Agora é impossível. Sabe que existem túneis que ligam os dois blocos? Eu sei o trajeto. Ah! O time de futebol de salão do edifício não perdia nem para o Cruzeiro nem para o Galo. Eu e meus amigos somos bons”, empolga-se, apontando em direção à fachada em reformas.

João e Márcio só mudam o tom da voz ao discursar sobre o preconceito que ronda o Edifício JK, associado à venda de drogas e à prostituição. “Muita gente nunca entrou no condomínio e fala mal do ambiente, colaborando para a sua decadência. A vizinhança é tranquila e todos se respeitam”, esclarece Márcio Otoni. Eles esperam que os mineiros reconheçam no valor arquitetônico e social do JK um patrimônio nacional.


Valor e glamour que as “ ondas” do Edifício Niemeyer continuam a ostentar na Praça da Liberdade, Bairro Funcionários. Construído para abrigar as famílias emergentes das alterosas, as chaves dos seus 22 apartamentos luxuosos, distribuídos por 12 andares (um deles terraço) foram entregues em 1960. Entre as personalidades que residiram no prédio, está Tancredo Neves.

O sobrinho do ex-presidente ainda reside no local. “Meu tio chegou ao prédio em 1978 e permaneceu até a morte. Meu pai, Jorge Almeida Neves, ainda é um dos três moradores originais. Isso significa que completaremos 50 anos no edifício em dezembro, ou seja, o sentimento da família com o prédio é único”, afirma Jorge Almeida Neves Filho, 61 anos, advogado e administrador de empresas.

Revitalização de edifício na Praça da Liberdade em curso

A próxima missão dos Neves será a de revitalizar o edifício. “Calculo de um mês a 90 dias para a liberação das obras. Trata-se de um lugar tombado e tudo deve ser consultado e estudado”, adianta. A Praça da Liberdade e Conjunto Arquitetônico da Pampulha são tombados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), respectivamente.

Jorge Neves conta que muitos cidadãos gostariam de entrar nos apartamentos para ver as tais paredes tortas de perto. “O espaço interior se parece ao de uma casa, amplo e aberto”, descreve. O também morador Sérgio Almeida completa. “Abraçamos a Praça da Liberdade da sacada, o que nos proporciona momentos lúdicos”, revela o médico.

Oscar Niemeyer só retornou ao edifício após a inauguração do prédio. Jorge não o conheceu, mas faz questão de homenageá-lo. “Dono de uma arquitetura forte e marcante, Niemeyer envolve todas as esferas da nossa sociedade. Ele é carioca. Porém, seria perfeito e aceitável se fosse belo-horizontino”, opina.

Em frente ao Edifício, duas noivas tiravam fotos na Praça da Liberdade, e os vestido brancos se contrastavam com o verde e o colorido das flores. “Tem cenário mais agradável do que este?”, pergunta a joalheira Maria Lúcia Barbosa.

 

Fonte: Hoje em Dia